A Argentina é um enorme país ao sul do Brasil com muitos atrativos. Três deles, em particular, são capazes de proporcionar aos brasileiros as maiores sensações de prazer possíveis a um ser humano. O primeiro é democrático, abundante e bastante acessível, inclusive fora da Argentina; O segundo, ao contrário, é restrito no tempo e no espaço e só é acessível a um seleto grupo de pessoas muito especiais. Por fim, o terceiro exige um pouco de preparo físico e também é restrito no tempo e no espaço, embora em amplitude significativamente maior que o segundo.
Vamos lá:
- (1) o bife argentino, seja o lomo, o chorizo, o assado de tira ou qualquer outro corte, é o melhor do mundo. Sua textura é delicada e seu sabor é inigualável. Em Buenos Aires há milhares de restaurantes que o servem de diferentes maneiras, todas de dar água na boca, mas também é fácil comer um bom bife em Salta, em Mendoza, em Córdoba, em Rosário, em El Chaltén, em Ushuaia e em praticamente qualquer ponto do território argentino. Com efeito, essa maravilha gastronômica é tão democrática que já a desfrutei em Paris, em Sydney e em Lisboa, entre outras cidades que contam com restaurantes argentinos de alta qualidade.
- (2) Ganhar do Boca Juniors em plena Bombonera. É um feito para poucos. Em mais de cem anos, apenas Tricolores, Papões, Raposas, Peixes e Colorados tiveram o privilégio de sentir essa emoção extraordinária. Emoção melhor ainda, quando combinada com um bife de chorizo mal-passado, degustado em um restaurante na Calle Florida.
- (3) Trilhar na Patagônia. Transespinhaço, Transcarioca, Travessia dos Lençóis, Caminho dos Veadeiros, Caminhos da Serra do Mar, Ararunas, Transmantiqueira… enfim, as mais de 250 trilhas da Rede Brasileira de Trilhas têm vistas maravilhosas, cachoeiras límpidas e fauna exuberante. Não quero desmerecer a nós mesmos, mas competir com as paisagens da Patagônia é quase tão difícil quanto ganhar do Boca na Bombonera. A Patagônia é, seguramente, uma das regiões mais bonitas do mundo. Como diretor de criação e manejo do ICMBio, cargo que exerci na década passada, eu tinha que supervisionar os critérios para criação de unidades de conservação. Na categoria Monumento Natural, um dos critérios mais importantes, segundo a Lei do SNUC, é “a grande beleza cênica”. Pois é… a valer esse critério na Patagônia, difícil é definir o que não é monumento natural.
A Huella foi concebida dentro da Administração de Parques Nacionais ou, simplesmente APN, como é conhecida a instituição congênere do ICMBio na Argentina. Também a Rede Brasileira de Trilhas foi gestada dentro de uma tríade de órgãos públicos, ICMBio, Ministério do Turismo e Ministério do Meio Ambiente. A diferença é que, no Brasil, a Rede teve mais um padrinho: a sociedade civil, e esse padrinho fez toda a diferença em relação a nossos vizinhos. Não me entendam mal, não quero dizer que o componente sociedade civil seja mais importante que o componente institucional, quero dizer que ambos os componentes são indispensáveis para o sucesso de uma Rede de Trilhas.
A Huella chegou embasada em um robusto estudo técnico e amparada por alguns servidores da APN que, além de profissionais muito capazes, tinham grande comprometimento ideológico com o projeto. E é justamente aí onde a Huella pecou. Sua decolagem, ancorada em sólidos pressupostos técnicos e apoiada em orçamento polpudo para padrões latino-americanos, foi muito mais rápida que a nossa. Em poucos meses a Huella se tornou uma estrela em ascensão. O problema é que uma trilha de longo curso, ou uma Rede de Trilhas, não é um projeto. É um processo.
Projetos são concebidos de maneira centralizadora, são implementados de cima para baixo, têm dono, slogan, jingle e precisam dar frutos em 4 anos, pois estão atrelados ao ciclo eleitoral, precisam render votos. Já processos demoram décadas, às vezes gerações inteiras, precisam de forte engajamento da sociedade e das diferentes instâncias de governo. Por isso precisam ser implementados com forte componente de base, de baixo para cima. Governos vão e vêm, a sociedade fica. É precisamente esse engajamento de base que permite o alinhamento de governos municipais, estaduais e federal, independente da coloração política, e que conduz à manutenção de uma política pública, mesmo com alternância de poder e de matiz ideológico.
A Huella, tal como concebida em 2008 por seus idealizadores, Estefanía Chereguini e Walter Oszust, prevê uma rota com 564 km, divididos em 42 trechos. Inicialmente, os próprios idealizadores sinalizaram a trilha, com apoio de Horacio Pelozo, da Associação Argentina de Guias de Montanha, mas o projeto foi logo incorporado pelo Ministério do Turismo da Argentina, que então era o órgão ao qual os Parques Nacionais estavam subordinados. Um excelente estudo de viabilidade foi contratado e o conceito da Huella Andina foi ampliado para uma política pública nacional, semelhante À Rede Brasileira de Trilhas, denominada Senderos de Argentina: cujo objetivo é “impulsionar o desenvolvimento de trilhas de longo curso nas diferentes regiões turísticas, desenhados e operados sob o mesmo marco conceitual, critérios e principios, a partir de uma visão política, estratégica e territorial, que contribui para refletir a riqueza ambiental, cultural e histórica do país e a potencializar uma nova oferta de turismo sustentável”. O Plano Estratégico Turístico 2025, publicado pelo Ministério do Turismo argentino em 2015, tinha como um de seus objetivos entregar pronta ao público a Huella Andina. Nos últimos 8 anos, desde a publicação do Plano, muita coisa avançou e se consolidou, mas a projeção de 2015 não se cumpriu.
Ao visitar a Huella Andina em janeiro de 2023, deparei com uma trilha parcialmente implementada e com um pessoal de campo padecendo de baixa autoestima. A avaliação dos próprios argentinos sobre o estado da Huella, contudo, não coincidem com as minhas. O que eles vêem como meio copo vazio, eu interpreto como meio copo cheio e já passível de desfrute de uns saborosos goles, o que fiz com muito prazer.
Com a ajuda inestimável de Marcelo Cora, da Administração Nacional de Parques, em Buenos Aires, visitei trechos da Huella Andina nos Parques Nacionais los Alerces, Lago Puelo, Nahuel Huapi e los Arrayanes. Essas visitas, que somaram cerca de 150 km caminhados, incluíram uma travessia com pernoite. Em todos os parques entrevistei os analistas ambientais e guardas-parque, concessionários, população local e trilheiros.
Logo ao começar minha travessia – que incluiu os trechos 38 e 39 da Huella Andina, no Parque Nacional los Alerces –, encontrei um guarda-parque fazendo a manutenção da trilha. Parei por cerca de uma hora para conversar com ele. Tem plena consciência do potencial da Huella e de seu simbolismo como primeira trilha de longo curso argentina. Falava da trilha com entusiasmo, seus olhos brilhavam. Quando nos despedimos, entretanto, ele foi apologético: “desculpe pelo mau estado de manutenção da trilha”. Oito horas e 20 km depois, posso assegurar que, se o trecho 39 da Huella Andina não tem a manutenção de uma Appalachian Trail, por outro lado não deixa nada a dever a nenhuma trilha brasileira e à grande maioria das trilhas europeias. Os argentinos estão de parabéns.
Esse sentimento de que a Huella, ainda que incompleta, é um processo fantástico, me acompanhou em todas as visitas que fiz. O planejamento da Huella acertou muito, pois incorporou trilhas pré-existentes, conectou unidades de conservação, privilegiou vistas maravilhosas e variadas e teve a preocupação de prover locais de pernoite e abastecimento, como campings privados, refúgios e armazéns ao longo do caminho. Na noite que passei entre o trecho 39 e o trecho 38, por exemplo, dormi no espetacular abrigo Kruger, que não tem nada nem remotamente similar no Brasil.
A experiência se repetiu nos outros parques, onde sempre fui bem recebido por profissionais comprometidos e solícitos, mas pessimistas em relação à Huella. Por que?
Eu diria que a razão principal deriva do excesso de expectativa. A Appalachian Trail demorou quase 15 anos para ser completamente sinalizada e mais algumas décadas para eliminar seus trechos no asfalto ou em estradas de terra, substituindo-os por trilhas. A Trilha Transcarioca, aqui mais perto da Patagônia, tardou quase 20 anos para ser inaugurada. Porque a Huella ficaria pronta em uma só tacada?
Talvez porque o projeto tenha arrancado com orçamento polpudo, impulso político, pompa e circunstância. Excelente!!! Excelente se a Huella fosse um projeto. A questão é que sendo um processo seus resultados demandam mais tempo que o ciclo eleitoral. Assim, ao não apresentar resultados imediatos, ela logo foi para a gaveta de iniciativas que não merecem atenção.
Felizmente, contudo, um grupo de aguerridos servidores da APN não deixou a ideia morrer e, graças a ele, há esperança de que o processo seja retomado em bases sólidas. Há um claro entendimento hoje de que tão importante quanto recursos financeiros é o pertencimento dos diversos atores. Nisso a Huella falhou.
Ao ser implementada inicialmente, o foi com recursos fartos para padrões brasileiros, parece não ter envolvido os pequenos empresários, os municípios e a sociedade civil, como protagonistas da Huella, mas como meros coadjuvantes. Ao se conversar com esses atores, fica a impressão de que a primeira trilha de longo curso argentina foi implementada por “alguém” em Buenos Aires.
Percebi sentimento parecido nos guardas-parque, que parecem ver a Huella como mais uma trilha em sua unidade, quando uma iniciativa dessa magnitude, para dar certo, precisa ser encarada como A TRILHA, não só da unidade, mas de todo o país. Assim, os dirigentes das unidades de conservação não dão à Huella o lugar de trilha referência nacional, quando planejam sua manutenção, a divulgam ou mesmo a sinalizam. Tampouco percebi, assim como em muitos analistas ambientais no Brasil, capacidade para pensar fora da caixinha. Para esses profissionais, a Huella termina no limite dos parques em que trabalham. Não conseguem visualizar sua importância como conectora de paisagens e como elemento de ligação das áreas protegidas patagônicas. É preciso extrapolar o paradigma de ilhas de conservação isoladas para o paradigma de áreas protegidas conectadas. Essa visão ainda não permeia a maioria dos profissionais de parques conectados pela Huella. O dia que entenderem isso, trabalharão não apenas na sua implementação dentro dos respectivos parques, mas também nos trechos que conectam as diferentes áreas protegidas.
A boa notícia é que o processo não está morto. Profissionais como Marcelo Cora e Ricardo Pereyra, do Parque Nacional Nahuel Huapi, já identificaram os problemas e estão trabalhando na correção de rumos. Não há de ser fácil, nem rápido, mas quando estiver finalmente pronta, a Huella Andina tem potencial para ser declarada como Área Protegida linear. Há de ser o Monumento Natural mais bonito do mundo e capaz de gerar nos trilheiros um êxtase só comparável a uma vitória sobre o Boca na Bombonera (seguida, por supuesto, de um jugoso bife de chorizo).
PS: Tanto Huella Andina quanto Sendero de Chile estão sendo esperadas para apresentar suas experiências no II Congresso Brasileiro de Trilhas que vai acontecer em Niterói entre os dias 20 e 24 de setembro de 2023.
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