Uma grande variedade de espécies de mamíferos no norte global se adaptou às mudanças sazonais do ambiente em que vivem mudando de pelagens castanhas de verão para pelagens de inverno esbranquiçadas, de forma a combinar com seu ambiente. Esta característica adaptativa possibilitou às espécies uma diminuição de sua vulnerabilidade frente a predadores naturais. Mas é possível que, com as mudanças climáticas, elas tenham de passar por uma nova adaptação.
A mudança no clima já começou a afetar a extensão e o tempo da cobertura de neve, deixando muitos indivíduos e populações agora incompatíveis com o ambiente durante parte do ano. Isto é, animais de pelagem branca em um ambiente predominantemente marrom.
Um grupo de pesquisadores norte-americanos e portugueses conseguiu determinar a origem genética da variação da cor da pelagem de uma espécie de lebre que ocorre no centro e norte dos Estados Unidos e Canadá. Com os resultados encontrados, eles foram capazes de fazer simulações para testar a sobrevivência da espécie às alterações do clima.
A conclusão a que chegaram é que a variabilidade genética da lebre poderá significar uma chance de adaptação da espécie aos novos tempos, mas as pressões que sofre são imensas. O trabalho foi publicado no final de março na revista Science.
“Otimismo moderado”
Assim como a raposa-do-ártico (Alopex lagopus), a doninha (Mustela nivalis) e as renas do ártico (Rangifer arcticus pearyi), as lebres-de-cauda-branca (Lepus townsendii) ganham uma pelagem branca no inverno, nas regiões onde neva, como forma de se mesclar ao ambiente, diminuindo sua vulnerabilidade.
Apesar de fazer a troca da pelagem, os pesquisadores responsáveis pelo trabalho publicado na Science descobriram que a espécie apresenta variações na cor que tem no inverno, indo de indivíduos completamente brancos, até indivíduos quase totalmente castanhos.
As populações sem alelos castanhos de inverno [totalmente brancas] têm uma tendência para se extinguir, enquanto a população com alelos castanhos conseguiu se adaptar rapidamente.
A equipe, então, passou a analisar amostras de DNA de 74 indivíduos e identificou um par de genes alelos que interagem entre si e são responsáveis pelo controle da cor do pelo. A partir dessa informação, a equipe construiu modelos para simular como estas populações vão reagir às alterações climáticas, considerando os diferentes cenários previstos pelo Painel Intergovernamental da ONU sobre mudanças climáticas (IPCC).
As simulações consideraram a evolução no número de indivíduos das populações em diferentes cenários de aquecimento, entre 2000 e 2080, e para diferentes tipos de populações: algumas em que todas as lebres tinham pelagem branca e outras com diferentes percentagens de indivíduos de pelagem castanha.
O artigo informa que “as populações sem alelos castanhos de inverno [totalmente brancas] têm uma tendência para se extinguir, enquanto a população com alelos castanhos conseguiu se adaptar rapidamente”.
Como a determinação das lebres que vão sobreviver se dará pela seleção natural – um dos principais mecanismos de evolução, descrito por Charles Darwin no século XIX – o fator “tempo” é fundamental nesse processo.
“No contexto geológico, há ciclicamente alterações climáticas que afetam as espécies, mas os atuais impactos humanos no ambiente estão acontecendo a uma rapidez sem precedentes e é importante compreender se a evolução pode acompanhar essa rapidez”, disse o pesquisador José Melo-Ferreira, ao jornal português Público.
Um dos autores do estudo, Ferreira é pesquisador do Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos (Cibio-Inbio) da Universidade do Porto e também do Departamento de Ciências Biológicas da Universidade de Montana, em Missoula, Estados Unidos.
O trabalho dele e de outros dez colegas fala em um “otimismo moderado” em relação à sobrevivência da espécie no cenário de mudanças climáticas. Isso porque a análise foi centrada em apenas uma das várias agressões a que as lebres estão expostas, neste caso, a redução da cobertura de neve.
No mundo real, as alterações climáticas causam várias mudanças, como na temperatura e na precipitação. Isso sem falar nas outras ameaças trazidas pelos humanos, como caça e perda de habitat.
Mesmo com um cenário incerto sobre o futuro da lebre-de-cauda-branca, os resultados do trabalho são peça-chave nos processos para preservação da Lepus townsendii.
Saber onde estão as espécies potencialmente mais propensas à adaptação – as com alelos castanhos e que vivem mais ao sul – pode levar à criação de áreas de conservação que possibilitem não só a manutenção de populações locais, mas também que possam unir corredores ecológicos entre regiões, de forma a possibilitar o cruzamento das espécies do sul com as mais ao norte, criando uma variabilidade genética capaz de responder com maior rapidez às alterações climáticas.
“Nós tentamos entender de onde a diversidade vem, o processo como novas espécies surgem, e como elas se adaptam ao meio ambiente. Isto é, tentamos entender como diferentes organismos toleram o meio ambiente, lidam com os diferentes desafios que eles têm que enfrentar. Usando o passado para tentar prever o futuro, com nossas modelagens, nós prevemos que as lebres-de-cauda-branca terão o tempo necessário para a seleção natural”, disse a ((o))eco o pesquisador Jeffrey M Good, diretor do Núcleo de Genômica da Universidade de Montana que também assina o trabalho.
Good e colegas são membros da Rede de coordenação de pesquisa g2p2pop (RCN g2p2pop), projeto realizado pela Universidade do Norte do Arizona e financiado pela National Science Foundation americana, que tenta prever as respostas dos vertebrados às mudanças climáticas.
A rede integra mais de 300 pesquisadores de 27 países, envolvidos em estudos que vão desde o nível molecular, a partir da análise genética (genoma), pensando pela forma como as características visuais (fenoma) dos animais são impactadas pelas mudanças climáticas, até suas implicações nas populações. Isto é, do genoma para o fenoma para a população (g2p2pop, em inglês).
A história da lebre-de-cauda-branca ajuda a exemplificar o escopo do Projeto: neste caso, os pesquisadores estudaram a origem genética da mudança de pelagem (genoma), para entender como as características físicas (fenoma) influenciam na forma como a espécie interagem com o ambiente, para então simular a sobrevivência das diferentes populações nas áreas em que ocorrem (populações).
Mas o trabalho de Good é apenas um entre muitos que estão sendo realizados dentro da Rede. O objetivo é que o conhecimento gerado nos diferentes lugares do mundo, e nas diversas áreas de pesquisa que perfazem a RCN, possa ser utilizado de forma mais abrangente, para resultados mais robustos.
“Nosso trabalho serve como modelo para entender ‘sazonalidade’ em geral, e no Brasil, principalmente na Amazônia, você tem muita sazonalidade, com estações de cheia e outras mais secas. Então, as especificidades podem ser diferentes, mas as razões para tentar entender conexões [entre espécies e ambiente] são as mesmas”, explica ele, quando questionado sobre a importância do trabalho para a realidade brasileira.
No Brasil, o projeto tem como parceiros o Instituto Butantan (IBu), a Universidade de São Paulo (USP), o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, entre outras. “Nós buscamos formar uma rede de pesquisadores para abordar problemas multidisciplinares em uma escala maior do que estamos acostumados”, resume a Dra. Erika Hingst-Zaher, pesquisadora do Instituto Butantan e coordenadora das ações do programa no Brasil.
Entre os dias 13 e 20 de março, 55 pesquisadores da rede – representantes de 30 universidades e instituições de pesquisa de sete países – participaram de um encontro do projeto na Amazônia. Durante sete dias, eles visitaram diferentes ecossistemas amazônicos, ao longo do rio Negro, no estado do Amazonas.
Segundo Erika Hingst-Zaher, a expectativa é que, desse encontro, novos conhecimentos sobre a floresta tropical surjam. “Nós tivemos a chance de, durante o evento, explicar aos pesquisadores de fora do Brasil e de outras regiões do país bastante dos ecossistemas e da diversidade que podemos encontrar na Amazônia. Isto é, trouxemos os olhos dessas pessoas para cá. Esperamos que isso possa se traduzir em novas pesquisas sobre o bioma”, finaliza.
A repórter Cristiane Prizibisczki viajou a Manaus a convite do projeto RCN g2p2pop. Acompanhe na próxima reportagem desta série a história de alguns dos trabalhos apresentados durante o workshop.
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