Uma ação do Ministério Público Federal (MPF) acolhida pelo judiciário e denúncias de ongs sobre supostas irregularidades em atividades privatizadas engrossam o caldo da revisão das regras de gestão dos parques nacionais dos Aparados da Serra e da Serra Geral, no Rio Grande do Sul.
Representantes de segmentos como montanhistas, governos, moradores da região, guias de turistas, concessionária de serviços e de seu conselho consultivo debatem esta semana em Cambará do Sul, no topo da serra gaúcha, a atualização do plano de manejo daquelas reservas federais.
Cada documento é um manual de uso dos recursos naturais de unidades de conservação, sejam abertas ou não ao público. Baseados em estudos ecológicos e sociais, listam as atividades que podem e que não devem acontecer nessas áreas para proteger a natureza.
O Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) afirma que a revisão irá aprimorar e atualizar um plano de manejo defasado quanto a “orientações institucionais”. “O vigente foi elaborado há mais de 20 anos”, descreve a Assessoria de Imprensa da autarquia.
Ao mesmo tempo, uma ação no MPF questiona impactos de ações comerciais e do turismo sobre abelhas que seriam exclusivas das reservas. O processo agregou denúncias de entidades civis sobre atividades concedidas ao setor privado que estariam ultrapassando as normas de uso de parques nacionais.
Conforme petições do MPF e da ong Instituto Mira-Serra à 9ª Vara Federal de Porto Alegre (RS), faltariam ações efetivas para proteger os insetos, ameaçados inclusive pelo trânsito de carros e outros automóveis, fora os próprios dos parques, na até agora única área onde foram identificados.
“É preciso buscar populações da espécie em outros pontos dos parques. Isso nunca foi feito”, relata um servidor federal que pediu para não ser identificado pela reportagem de ((o))eco. O inseto vive em tocas no chão que podem ser soterradas pela circulação de veículos e obras de infraestrutura.
As ameaças se tornaram mais evidentes desde 2018, quando um test-drive de veículos foi promovido por uma montadora no Parque Nacional dos Aparados da Serra. A ação não seria prevista no plano de manejo e não teria aval do conselho consultivo das reservas federais.
“Os veículos passaram em cima da área onde vivem os insetos”, declara a bióloga Lisiane Becker, da ong Instituto Mira-Serra. A entidade é parte do conselho consultivo dos parques nacionais e da Rede de Ongs da Mata Atlântica (RMA).
O ICMBio afirma cumprir todas as medidas para proteger as abelhas, como barrar veículos com fins comerciais ou de passeio no local. “Intervenções em trilhas, com possíveis notificações de abelhas Monoeca xanthopyga, são condicionadas de acordo com os métodos científicos recomendados”, diz.
Informações levantadas por ((o))eco dão conta de que a concessionária de serviços têm pedido autorizações que trarão “receitas acessórias” nas reservas federais, como para sky bike – uma espécie de tirolesa onde bicicletas percorrem um cabo de aço – e outro pêndulo, no cânion do Itaimbezinho.
“A Justiça Federal tem cobrado do ICMBio um plano de uso público dos parques junto a seu Conselho Consultivo, pois preocupa a possibilidade de que as unidades de conservação, de Proteção Integral, recebam megaeventos e outras ações que prejudiquem sua conservação”, conta Lisiane Becker, do Mira-Serra.
Um artigo editado no International Journal of Advanced Research in Arts, Science, Engineering & Management alerta que o turismo excessivo pode trazer benefícios econômicos, mas também impactos negativos sobre a natureza, as populações humanas e a imagem do setor.
“O aumento do turismo pode levar à superlotação, à degradação ambiental e a danos a locais de patrimônio cultural. É fundamental encontrar um equilíbrio entre a promoção do turismo e a proteção do meio ambiente e das comunidades locais”, descreve a publicação, de 2021.
Conce$$ão criticada
O valor dos ingressos aos parques nacionais dos Aparados da Serra e da Serra Geral também são criticados por ongs e operadores de turismo na região. Isso teria reduzido o fluxo de visitantes nas áreas protegidas e até encolhido a arrecadação de municípios ao seu redor, cita reportagem do UOL, de abril.
Os passes individuais variam de R$ 65,00 (idosos) a R$ 94,00 para até três acessos aos dois parques nacionais, em sete dias. Crianças de até 5 anos, guias e residentes regionais cadastrados são isentos. O estacionamento custa de R$ 6,00 (motos) a R$ 55,00 (ônibus). Antes da concessão, o acesso era gratuito.
Os valores de entradas e estacionamento somados estão entre os mais altos do país para acesso a áreas equivalentes e são similares aos do Parque Nacional de Yellowstone, nos Estados Unidos, levantou ((o))eco. A reserva criada em 1872 recebeu 3,3 milhões de turistas no ano passado.
O número de visitantes nos parques nacionais caiu de 200 mil no primeiro ano de concessão, em 2021, para 100 mil em 2022. Os números foram influenciados pela cobrança de ingressos e restrições impostas pela pandemia de COVID-19. Mas outros fatores podem pesar na balança.
“A concessionária alega tentar manter visitantes por mais tempo na região, usando mais serviços. Mas não se pode desprezar o perfil atual do turista, que vem aqui muitas vezes só para visitar os parques, retornar e dormir em casa”, pondera o servidor federal ouvido por ((o))eco.
Procuramos a Secretaria de Turismo de Cambará do Sul, mas a mesma não atendeu aos nossos pedidos de entrevista até o fechamento da reportagem.
O leilão da concessão dos parques foi vencido em 2021 pelo grupo Construcap, que propôs investir R$ 260 milhões em três décadas de contrato. Os investimentos iniciais de R$ 20,5 milhões foram 27 vezes superiores ao lance mínimo exigido, de R$ 718 mil, mostrou ((o))eco.
A minuta do acordo firmado com o ICMBio previa que a principal fonte de arrecadação da concessionária viria da cobrança de ingressos, que começariam em R$ 80,00 e teriam ajustes anuais pelo IPCA. Outras fontes de receita deveriam atender sempre ao plano de manejo.
Uma análise de 2020 do Tribunal de Contas da União (TCU) não identificou falhas graves no processo de concessão, mas alertou que a aprovação implícita de “investimentos adicionais e receitas acessórias pode, eventualmente, representar um risco” para o “equilíbrio entre visitação e proteção ambiental”.
No mesmo ano, o portal Política por Inteiro avaliou que o termo “gestão de áreas” no procedimento “pode causar estranheza com a possibilidade de concessão da gestão” dos parques. A citação foi replicada no extrato de concessão, publicado no Diário Oficial em dezembro de 2021.
A concessão de Aparados da Serra e da Serra Geral é administrada pela Urbia, do grupo Construcap. A Urbia responde por serviços em outros parques e áreas verdes, em São Paulo. A empresa não atendeu aos nossos pedidos de entrevista até o fechamento da reportagem.
Conceder serviços em parques e outras reservas ocorre em boa parte do mundo e é previsto na lei no Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC). Quase duas dezenas de parques nacionais foram listados para leilões no Programa de Parcerias de Investimentos (PPI).
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