No Brasil e em diversos países, o javali é uma espécie invasora que causa prejuízos sociais, econômicos e ambientais. Introduzida no país na década de 1960, ela começou a se expandir no final dos anos 80. O controle da população por meio do abate foi liberado para todo o país em 2013, entretanto, um estudo publicado no último ano identificou que o número de municípios com ocorrência de javalis mais que triplicou nos últimos anos. Saltou de 370, em 2012, para 1.152, em 2019. Além das características biológicas da espécie, essa expansão pode estar ligada ao transporte intencional de animais para caça. Assim, o manejo do javali depende, entre outros fatores, da capacidade do governo de lidar com o conflito de interesses entre setores, engajar instituições privadas e governamentais no monitoramento e controle dos animais e desenvolver pesquisas sobre métodos de controle mais eficientes para realidade social e ambiental brasileira.
No âmbito federal, a questão é gerenciada pelo Plano Nacional de Prevenção, Controle e Monitoramento do Javali (Sus scrofa) no Brasil que, numa primeira avaliação, realizada em fevereiro, concluiu que as ações não foram suficientes para prevenir a expansão geográfica do javali e sua reinvasão em áreas onde existe o controle. Para Clarissa Rosa, pesquisadora integrante do Grupo de Assessoramento Técnico (GAT), responsável por essa avaliação, “a extinção do javali no país é impossível”. A pesquisadora, que também é coautora do estudo de 2022, destaca três grandes desafios para o controle: a reinvação de áreas controladas enquanto houver animais em áreas adjacentes; a habilidade do javali de evitar armadilhas e caçadores; e o interesse humano pela caça e pela carne. De acordo com o estudo “a distribuição dos javalis no Brasil já se expandiu por todos os biomas, exceto a Floresta Amazônica”, mas ainda não é possível afirmar se a Floresta é uma barreira geográfica e ambiental, ou se é apenas uma questão de tempo para o javali chegar lá.
Formas de controle e controvérsias
O controle do javali (Sus scrofa) no país pode ser feito por pessoas físicas ou jurídicas, por caça por perseguição e/ou pelo uso de armadilhas do tipo jaula ou curral. Segundo o relatório do GAT, entre 2017 e 2022, foram enviados 382.076 relatórios de atividade de controle, reportando 452.636 javalis abatidos, o que dá cerca de 1,18 javalis por relatório. Isso pode significar que os métodos de controle não estão sendo eficientes e/ou que as pessoas estão solicitando autorização, mas não estão realizando o abate – o relatório é necessário para a renovação da autorização, mesmo que nenhum abate tenha ocorrido.
“Estamos organizando uma revisão da norma de controle de javalis, assim como a forma de engajamento dos controladores”, conta por e-mail Juliana Junqueira, da Coordenação de Gestão, Destinação e Manejo da Fauna e Biodiversidade Aquática do IBAMA. “A questão em si acredito que está vinculada a esforço pulverizado, quando o ideal seriam campanhas de esforço controlado e maior abrangência das ações”, analisa Junqueira, que é responsável pela análise dos dados do Sistema de Informações de Manejo de Fauna (SIMAF).
Segundo o ecólogo Felipe Pedrosa, coautor do estudo de 2022 e integrante de uma das poucas empresas especializadas no manejo do javali, a Mão na Mata, cada armadilha captura em média 12 animais. “A eliminação de fêmeas e filhotes é importante para o controle populacional, pois são os filhotes que mantêm as futuras populações”, explica. Numa grande propriedade, mais de uma armadilha pode ser colocada, buscando-se a eliminação de todos os indivíduos, mesmo assim, um ou outro animal pode fugir, já que alguns aprendem a evitar as armadilhas.
Em geral, o uso de armadilha não é viável em pequenas propriedades, seja porque não há espaço ideal para armá-las ou porque a propriedade é só uma passagem para os animais. Também há casos em que os proprietários não podem ou não querem pagar pelas armadilhas. A caça por perseguição, realizada pelo proprietário ou por voluntários, acaba sendo a opção. Tal atividade é bastante controversa e está associada a problemas como: transmissão de doenças, soltura intencional de javalis e o aumento do número de pessoas com acesso a armas. Outro ponto destacado pelo GAT é a necessidade de uma definição sobre o que fazer com as carcaças. Atualmente, a legislação proíbe a comercialização e até o transporte das carcaças, mas não impede seu consumo.
Também existe uma resistência muito grande à atuação de caçadores por parte dos gestores de Unidades de Conservação, devido ao histórico de caça de espécies nativas, embora algumas parcerias pontuais já tenham sido realizadas. Como a parceria com um antigo caçador local, no Parque Nacional do Itatiaia (entre os estados de Minas Gerais e Rio de Janeiro), e o abate, por controladores cadastrados, dos animais capturados nas armadilhas de teste do Parque Estadual de Vassununga (SP).
Pesquisa e ações integradas
Em geral, ambientes com elevada biodiversidade limitam o crescimento populacional de espécies invasoras, dada a competição por recursos com as espécies nativas. Alguns especialistas acreditam que áreas nativas grandes e bem preservadas poderiam ser uma barreira para o avanço do javali, mas ainda é necessário o desenvolvimento de mais pesquisas para confirmar esta hipótese. Para a equipe do GAT, uma forma de incrementar o conhecimento sobre o javali no Brasil, seria a abertura de editais específicos para pesquisas sobre o tema.
Para Marcella Pônzio, doutoranda do Instituto de Biociências da USP, que pesquisa a biodiversidade de mamíferos de médio e grande porte em paisagens predominantemente agrícolas no nordeste paulista, “a curiosidade em estudar o javali veio da demanda que a gente viu em campo”, conta. “É impressionante o poder de destruição desses animais em relação a corpos d’água e nascentes, que são áreas de proteção permanente, e nos próprios cultivos”, alerta Pônzio.
A pesquisa, ainda em andamento, desenvolve modelos, a partir de vestígios e registros fotográficos de animais em diferentes ambientes, para entender como as populações de mamíferos, inclusive os javalis, variam em paisagens com maior ou menor heterogeneidade (diversidade de cultivos e presença de áreas nativas). Segundo a orientadora de Pônzio, Renata Pardini, o controle de uma espécie depende de estratégias que considerem a dinâmica espacial e temporal de crescimento de sua população. Pesquisas como esta poderiam contribuir para a seleção de áreas-chaves para concentrar ações de controle dos javalis.
Pônzio e Pardini também participam do Biota Síntese, um projeto financiado pela Fapesp que busca soluções inspiradas na natureza para problemas socioambientais do Estado de São Paulo. O projeto trabalha com coprodução de conhecimentos, integrando gestores públicos, academia e sociedade civil para identificar problemas, buscar soluções e propor políticas públicas. “Isso que me chamou atenção no Biota [Síntese], essa sensação de que eu poderia contribuir com um debate maior, que saísse um pouco do âmbito acadêmico, e, quem sabe, ajudar com a minha pesquisa ou receber ajuda dessas outras pessoas”, comenta Pônzio.
O grupo de trabalho, coordenado pelo professor Gerd Sparovek, da Esalq-USP, se reuniu pela primeira vez no ano passado. O encontro, focado em identificar desafios e possibilidades dentre as diversas demandas relacionadas ao javali, contou com a presença de representantes de: pesquisadores da área de ecologia e zoonose, Secretaria de Agricultura e Abastecimento, Secretaria de Meio Ambiente, Infraestrutura e Logística, Fundação Florestal, IBAMA e sociedade civil.
Um problema para lavouras, criações e biodiversidade nativa
Pertencente à mesma espécie dos porcos domésticos, os javalis foram transportados para o mundo todo para caça e criação. Mas, “são, justamente, os fatores que fazem dele um bom animal de criação, que, quando solto no ambiente, se tornam um problema: eles reproduzem muito, comem muito, crescem muito e são muito resistentes a doenças”, destaca Guilherme da Rocha, especialista ambiental da Fundação Florestal e membro do Comitê Permanente Interinstitucional de Manejo e Monitoramento das Populações de Javalis no Território Nacional.
Javalis comem praticamente qualquer coisa, mas encontraram nas lavouras de milho e cana uma fonte garantida de alimento, o que pode ter impulsionado o crescimento da população no país. Além disso, “o javali estraga muito mais do que o que ele come”, conta Pedrosa, “ele derruba um pé, mordisca, derruba outro, mordisca e vai fazendo isso”, aumentando seu impacto. Rocha e Pedrosa também participaram do encontro do Biota Síntese.
Os machos podem se aproximar de porcas domésticas, criadas livres ou em chiqueiros frágeis, para acasalar, gerando híbridos – conhecidos como javaporco – ainda maiores que os javalis selvagens. Esse contato representa um risco de transmissão de doenças, como a peste suína, que pode resultar na eliminação de todo o rebanho, impactando diretamente o produtor.
Nas florestas nativas, um dos principais impactos do javali é chafurdar o solo, cavando-o com seu focinho. “Os primeiros centímetros de solo são os mais importantes, em termos de matéria orgânica e biodiversidade, e é justamente essa a camada que é impactada pelo javali, porque ele tem o focinho mais comprido que as espécies nativas, como o cateto”, explica Rosa, que é pesquisadora do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA). Esse comportamento pode destruir sementes e plantas jovens e contribuir para o assoreamento de córregos e nascentes.
Por seu grande porte, os javalis, praticamente não têm predadores naturais no Brasil. E, ao contrário da maioria dos animais nativos, eles não têm medo das pessoas, podendo até mesmo atacá-las. Para evitar confrontos, as pessoas podem ser privadas de utilizar espaços como quintais, parques e trilhas, como foi o caso do Parque Estadual de Vassununga, que ficou fechado entre 2018 e 2021 por conta da presença de javalis. Atualmente, o Parque executa um plano piloto de monitoramento por câmeras e controle com armadilhas.
Avistamento e outras ocorrências com javalis podem ser reportados por qualquer pessoa no site do Sistema de Informações de Manejo de Fauna (SIMAF).
Essa reportagem foi produzida no âmbito do Programa José Reis de Incentivo ao Jornalismo Científico (Mídia Ciência) da FAPESP – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. A autora, bolsista do programa, tem como foco a produção de conteúdos jornalísticos e de divulgação de resultados e conteúdos correlatos ao Projeto Biota Síntese.
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