REPORTAGEM
Pressão por terras, portos e estrada sufocam comunidade no Pantanal
Implantação de hidrovia exportadora disseminará ameaças similares e desmatamento ao longo da Bacia do rio Paraguai
Aldem Bourscheit – de Corumbá/MS e Puerto Suárez (Bolívia),
Michael Esquer – de Cáceres/MT
Um povoado centenário resiste à disputa de suas terras pelo agronegócio e transporte de minérios. Portos, estradas e ferrovias inflados pela hidrovia Paraguai-Paraná afetarão pessoas e ambientes naturais no Pantanal todo, no Brasil e países vizinhos. Uma das maiores lagunas bolivianas secou.
Desde o Porto Morrinho, aos pés de imensa ponte sobre a rodovia BR-262, o piloteiro mantém boa velocidade enquanto dribla inúmeros balseiros [ilhas de vegetação] que a cheia espalhou no rio Paraguai. Em menos de 30 minutos, alcançamos a comunidade centenária de Porto Esperança, em Corumbá (MS).
O povoado nasceu como polo comercial e de passageiros com a chegada da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, em 1912. Ela ia de São Paulo ao Mato Grosso do Sul e adentrava a Bolívia até Santa Cruz de la Sierra, somando mais de 1.600 km. O trecho brasileiro é hoje uma concessão privada.
Escola, saneamento e internet atendem os moradores de Porto Esperança e turistas alojados em pousadas sobre palafitas, sobretudo na temporada de pesca, de março a novembro. Dois prédios ferroviários no local são tombados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
Suas cerca de 50 famílias são uma fração das 600 registradas ao longo da história. Pressões do agronegócio e do transporte de commodities explicam parte do êxodo que a comunidade vem sofrendo, especialmente desde 2014. Naquele ano, uma fazenda de gado se avizinhou do povoado.
Pessoas ameaçadas, animais mortos, roças destruídas e casas queimadas pintam um quadro de agressões registradas ao longo dos anos pelo Ministério Público Federal (MPF), que segue atento à situação. A comunidade ocupa o território com autorização da Secretaria do Patrimônio da União (SPU).
“Querem usurpar as nossas terras e depois vender para ampliação do porto. Viramos um estorvo para esses negócios”, constata Maria Auxiliadora Gomes, presidente da Associação de Mulheres Ribeirinhas de Porto Esperança. As águas em frente ao povoado são profundas, um canal natural de transportes.
Apenas uma cerca de tela separa a comunidade do terminal Gregório Curvo, onde trens despejam toneladas de minério de ferro. Dali, embarcações rumam com o produto até grandes portos exportadores, já na boca do Rio da Prata, entre Argentina e Uruguai.
O minério da morraria do Urucum é armazenado no local há 50 anos. Pessoas sofrem mais com a poeira em julho e agosto, com o vento sul. “Há vários casos de rinite”, diz Maria Gomes. Respirá-la por longo prazo pode causar lesões pulmonares. Não haveria ocorrências na comunidade.
Mas a movimentação de cargas junto ao povoado crescerá. Um novo megaporto privado foi licenciado, em abril, e uma rodovia ligará a BR-262 ao terminal Gregório Curvo. Os R$ 21 milhões da via são de um fundo estadual para ampliar a malha de transportes.
O governo sul mato grossense aposta que a estrada vai tirar a comunidade ribeirinha de um isolamento desde os anos de 1990, quando o Trem do Pantanal começou a ser desativado por falta de passageiros. Comunitários têm outra visão do projeto.
“É outra obra que beneficiará mais as empresas do que a comunidade. Se alguém com poder não olhar pela gente, talvez tenhamos que deixar o local”, avalia Maria Gomes, presidente da Associação de Mulheres Ribeirinhas de Porto Esperança.
A rodovia servirá igualmente para escoar o minério de ferro até outros polos comerciais quando o nível da água do rio Paraguai impedir o transporte por grandes barcaças. Isso ocorreu por meses ao longo dos anos, explodindo o tráfego de caminhões na BR-262.
Mas o drama não se resume a Porto Esperança. Mais comunidades e ambientes sofrerão à medida que portos, rodovias e ferrovias reforçam a hidrovia Paraguai-Paraná. Tudo é construído com licenças pontuais, recursos públicos e privados, mostrou ((o))eco em agosto de 2022.
Pela hidrovia historicamente passam cargas dos países da bacia pantaneira. Os custos econômicos seriam menores do que usar rodovias ou ferrovias, sobretudo para o Paraguai e a Bolívia, que não têm acesso direto ao Atlântico ou ao Pacífico.
Professor de Ecologia de Rios na Universidade de Estrasburgo (França) e membro da cátedra de Rios e Patrimônio da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), Karl Wantzen acompanha propostas para ampliação da hidrovia desde os anos 1990.
Para ele, o melhor é abandonar o projeto e ir numa direção mais sensata em termos ecológicos, econômicos e sociais. “Não é certo que a hidrovia terá esse efeito econômico que seus defensores projetam. É um investimento enorme, com efeito colateral gigantesco e resultados duvidosos”, destaca.
Ameaças pantaneiras
A Rede de Comunidades Tradicionais Pantaneiras (RCTP) evidencia riscos do avanço do agronegócio, mineração e infraestrutura. “Ameaças surgem porque esses povos não são vistos como um todo, como quem cuida dos direitos da natureza e das pessoas”, diz Edinalda do Nascimento, secretária-executiva do coletivo.
O reforço da hidrovia no rio Paraguai viola direitos quando empreendedores e governos não realizam as consultas “livres, prévias e informadas” às comunidades, como a lei pede. “Eles não nos enxergam, só chegam para nós depois que o trâmite burocrático já andou”, desabafa a ativista.
A construção de portos e a movimentação de barcaças podem forçar mudanças em alagados e no curso natural do sinuoso rio Paraguai, bem como no modo de vida tradicional. Tudo isso para que grandes cargas de commodities desçam o manancial com mais velocidade e menor custo.
“Eles querem transformar essas curvas em uma linha reta, transformar o rio”, denuncia Edinalda. Um rio com menos obstáculos escoará as águas mais rapidamente e encolherá os alagamentos anuais do Pantanal. Natureza e comunidades seriam drasticamente afetados
“As inundações renovam o solo das roças e a oferta de pescado nos rios. Sem um rio saudável não existiriam as comunidades tradicionais. Muitas famílias tiram dele grande parte da renda”, descreve a secretária-executiva da RCTP. O movimento de grandes embarcações pode ter outros efeitos colaterais.
“Um canoeiro de remo não vai ficar onde passa uma barcaça. Ou ele some dali ou vai ser engolido”, prevê o ribeirinho Isidoro Salomão, coordenador do Comitê Popular do Rio Paraguai, criado para proteger o maior curso d’água do Pantanal, a mais extensa planície inundável do planeta.
Licenças precárias
As licenças iniciais dos portos de Barranco Vermelho e de Paratudal, em Cáceres (MT), cidade limítrofe à Bolívia, foram emitidas em fevereiro e junho do ano passado pela Secretaria Estadual de Meio Ambiente (Sema) e aprovadas pelo Conselho Estadual do Meio Ambiente (Consema).
O licenciamento dos terminais havia sido suspenso em 2021 pela Justiça Federal após uma ação do Ministério Público Federal (MPF). Todavia, o governo Mauro Mendes (União Brasil) derrubou a decisão no Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Um recurso do MPF aguarda julgamento.
Para subsidiar o Judiciário com dados científicos sobre as licenças portuárias, o Fórum Nacional da Sociedade Civil nos Comitês de Bacias Hidrográficas quer integrar a ação do MPF, conta Mariana Lacerda, coordenadora do PesquisAção, coletivo focado em análises do Pantanal.
Para ela, as licenças pontuais emitidas pela Sema/MT deveriam ser revistas e os processos de licenciamento paralisados até que melhores estudos sejam feitos. “Isso inclui as licenças dos portos de Paratudal e de Barranco Vermelho e de operação do Terminal Portuário de Cáceres”, lista a advogada.
Como mostrou ((o))eco, para driblar uma avaliação estratégica conjunta de impactos no Pantanal, o conjunto de portos no rio Paraguai foi desmembrado em projetos individuais. Afinal, uma avaliação integrada de prejuízos socioambientais caberia ao Ibama e não aos órgãos estaduais.
“Não há um licenciamento da hidrovia, temos licenças de portos sem estudos da capacidade do rio para esse transporte”, pontua Mariana Lacerda, do PesquisAção. Enquanto isso, os impactos ao bioma se espalham nos países vizinhos, onde o desmate e a crise do clima pintam cenários inesperados.
Na reunião onde o Consema validou a licença prévia de Barranco Vermelho, em 2022, a então analista federal Cibele Xavier Ribeiro lembrou que um licenciamento da hidrovia é analisado desde 1998 pelo Ibama, em Brasília (DF), e defendeu uma “avaliação integrada” de todo o projeto.
“Se tem dúvidas sobre a concepção […] principalmente porque o EIA e o RIMA apresentaram inconsistências, o Ibama se posiciona no sentido de que, em face da tutela, esse processo deve retornar para fase de estudos”, afirmou Cibele, hoje superintendente da autarquia no Mato Grosso.
Vidas secas
A cerca de 20 quilômetros de Corumbá (MS), a boliviana Puerto Suárez já foi um importante centro produtor de gado e de transportes fluviais. Sua economia atual depende mais de serviços e turismo, debilitados pela seca extrema que assolou o Pantanal nos últimos 4 anos.
Os sintomas mais visíveis na região são o assoreamento e esvaziamento da Laguna Cáceres (foto acima). O manancial fica no ponto mais baixo da Bolívia e é um dos maiores do país. É ligado ao rio Paraguai pelo canal Tamengo, por onde portos escoam commodities agropecuárias e minerais.
A movimentação regional de cargas crescerá junto com a produção da Siderúrgica de Mutún, na mesma Puerto Suárez. Os aportes são da chinesa Sinosteel. A pressão por transportes pode reabrir uma estrada até outro porto no rio Paraguai, cortando a área mais sensível do Parque Nacional Otuquis.
A cooperação internacional japonesa bancou estudos sobre soluções para a pindaíba da laguna. A prefeitura de Puerto Suárez aposta no reflorestamento de nascentes e margens de rios que nela desaguam, mas sobretudo em dragagem e remoção de plantas aquáticas.
“Precisamos de uma coordenação de esforços nacionais para salvar a Laguna Cáceres”, avalia Maurício Montero Yorge, prefeito de Puerto Suárez. Em 2021, uma lei municipal decretou “desastre ecológico” pela situação do manancial e de outras áreas naturais.
Mas a dragagem é cara para os cofres municipais, demandaria equipamentos especiais e limpezas permanentes no manancial. Além disso, não pesa os ciclos naturais do Pantanal, dizem pesquisadores e especialistas ouvidos por ((o))eco.
“A história do bioma tem grandes períodos de cheias e de secas”, lembra Débora Calheiros, cientista da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e assessora do Ministério Público Federal (MPF). Levantamentos com mais de três décadas fazem coro com a especialista.
Imagens de satélite listadas pelo pesquisador da Embrapa Pantanal Carlos Padovani mostram grande variação natural no espelho d’água da laguna Cáceres desde 1984. “É preciso recuperar e preservar toda a bacia hidrográfica da laguna”, defende.
Ou seja, não há soluções parciais para um sistema que parou de funcionar. Para entidades civis bolivianas, a conta cai no colo da urbanização e do desmatamento, que minguaram alagados e afluentes e fazem as chuvas carregarem mais sedimentos à laguna.
“Desmatamento para soja e gado e incêndios aceleram o assoreamento e fragilizam a recuperação natural da laguna”, ressalta Miguel Ángel Crespo, especialista em Agroecologia e diretor da ong boliviana Productividad Biosfera Medio Ambiente (Probioma).
A Bolívia é o terceiro maior destruidor de florestas tropicais, atrás do Brasil e do Congo (África). Dados compilados pela Probioma apontam que o estado de Santa Cruz, onde está a Laguna Cáceres, responde sozinho por 83% do desmate no país.
Na região, o comércio e o desmate de terras baratas é intenso, inclusive por brasileiros. Grandes porções do território estão igualmente nas mãos de menonitas, evangélicos ultraconservadores cujos quadriláteros das fazendas de gado se destacam nas imagens de satélite.
A devastação é impulsionada nos países pantaneiros pela ampliação da hidrovia Paraguai-Paraná. O Chaco é a grande vítima na Bolívia, bioma com uma das maiores taxas de desmate do planeta. Assim, as crises globais do clima e da perda de biodiversidade ganham força.
Não bastando, o transporte de mercadorias e o escoamento de poluentes agrícolas, industriais e urbanos poluem rios e alagados, enquanto dragagens planejadas para manter canais abertos e profundos podem alterar os ambientes aquáticos e terrestres do bioma.
“Empresários querem transformar canais e o rio Paraguai numa ‘autopista’. É um sistema de produção e exportação que não se importa com a natureza e os entes locais”, destaca Miguel Miranda, pesquisador da ong Centro de Documentação e Informação Bolívia (CEDIB).
Frente às ameaças, cientistas elencaram motivos para interromper as obras da hidrovia. O time internacional lembra que secas mais fortes impedem o transporte fluvial e defendem que ferrovias sejam melhoradas e ampliadas para escoar cargas, pois seriam mais baratas e menos impactantes.
Os pesquisadores avisam que aprofundar e retificar o leito do rio Paraguai para mantê-lo navegável secará o Pantanal e prejudicará animais, plantas e pessoas – inclusive culturas ancestrais –, ampliará a emergência climática, facilitará monoculturas como da soja e de pastos exóticos.
“O Pantanal precisa das inundações naturais. Isso mantém a vida no bioma. Os custos reais da hidrovia têm que pesar os impactos à pesca, às populações indígenas e tradicionais, ao ecoturismo e aos serviços ecossistêmicos que serão perdidos”, lembra Karl Wantzen, da Universidade de Estrasburgo (França) e um dos autores do estudo.
Uma batalha vencida
No início dos anos 2000, ribeirinhos, pescadores e comunidades tradicionais de Cáceres (MT) frearam a ampliação da hidrovia Paraguai-Paraná. “Era a tentativa de licenciamento estadual do Porto de Morrinhos”, lembra Débora Calheiros, assessora do Ministério Público Federal (MPF).
Ela integrou a equipe que elaborou um relatório sobre a navegação no tramo norte do rio Paraguai, entre Cáceres (MT) e Porto Murtinho (MS). O documento embasou uma ação civil pública contra o empreendimento.
Esse trecho mais frágil do rio Paraguai cruza ou avizinha a Estação Ecológica (ESEC) de Taiamã, os parques Estadual do Guirá e Nacional (Parna) do Pantanal Mato-grossense, além da Terra Indígena (TI) Guató.
O Parna e a ESEC são zonas úmidas de importância internacional reconhecidas pela Convenção Ramsar, que o Brasil assinou em 1996. “O País deve responder pela sua preservação”, lembra Débora Calheiros.
Visto como “berço da hidrovia”, o projeto de Morrinhos gerou manifestações massivas. “Os cacerenses fecharam estradas e rodovias, trancaram o rio com chalanas e barcos. Era preciso defender o rio contra a hidrovia”, lembra Isidoro Salomão, coordenador do Comitê Popular do Rio Paraguai.
O movimento fez daquele 14 de novembro a semente do Dia do Rio Paraguai em Mato Grosso, instituído desde 2001. Uma conquista maior viria anos depois, em 2004, com a suspensão do licenciamento do porto pela Justiça Federal.
“Todo ano, o tema principal do nosso Dia do Rio Paraguai é a hidrovia Paraguai-Paraná”, conta Isidoro Salomão.
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