


Hidrelétricas, mega projetos agropecuários, portos e, ainda, uma hidrovia. Estes são alguns dos empreendimentos – e interesses – que avançam sobre municípios de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul e impõem ameaças ao Pantanal brasileiro. Em Cáceres (MT), projetos de infraestrutura desse tipo, e de outros, e os impactos que estes podem trazer à cidade e seus moradores tem provocado um movimento até então inédito para esta região: o de reconhecer a natureza como portadora de direitos.
Situado em região limítrofe com a Bolívia, o município tem cerca de 90 mil habitantes, e é cortado pelo rio Paraguai, principal responsável pelas inundações do Pantanal. “Cáceres tem o privilégio de ter esse rio e nós, povo cacerense, reconhecemos e vivemos disso. É a nossa cultura, nossa vida”, diz a ((o))eco o ribeirinho Isidoro Salomão.
Nascida e criada em Cáceres (MT), “na beira do rio”, como diz, Miraci Pereira da Silva se lembra da infância, quando ia até o rio Paraguai para lavar roupa, na companhia do pai, da mãe e dos irmãos. “Se a gente não lutar pelo direito da natureza, em pouco tempo isso não vai mais existir. Principalmente nessa região nossa, cobiçada do jeito que é”, desabafa ela a ((o))eco.
No ano passado, a Secretaria de Estado de Meio Ambiente (Sema-MT) emitiu licenças prévia para dois portos que querem se instalar no rio. O feito reacendeu o alerta para a ameaça de que, no futuro, os empreendimentos configurem o funcionamento de uma hidrovia com potencial de alterar o leito do curso d’água.
“Fica difícil da gente entender que com isso a gente não poderia ir ao rio por conta de uma barcaça (embarcação utilizada para o transporte de cargas) que vai passar”, conta Salomão, que na cidade coordena o Comitê Popular do Rio Paraguai, para quem uma hidrovia apenas provocaria danos ao rio e, consequentemente, ao pulso de inundação do bioma como um todo.
Neste cenário, que remete a temores conhecidos – outro porto já tentou se instalar na região no início dos anos 2000, mas teve o licenciamento arquivado pela Justiça –, o comitê, ribeirinhos, pescadores e outros munícipes que o integram querem que a natureza seja reconhecida como sujeita de direitos na cidade. O movimento é motivado pelo exemplo de outros municípios do País, que já alcançaram o objetivo.
“Uma iniciativa da sociedade civil, das comunidades organizadas e dos movimentos sociais para que a natureza tenha seus direitos respeitados”, enfatiza o coordenador do comitê, que é uma iniciativa popular criada para proteger e conservar as águas do rio Paraguai.

Mudanças na lei municipal
Para elevar a natureza à titularidade de direitos, os munícipes de Cáceres contribuíram com a elaboração de um Projeto de Emenda à Lei Orgânica (PLO) da cidade. Protocolada em junho pelo vereador Cézare Pastorello (PT-MT), a PLO nº 3/2023 quer fazer com que a cidade observe o princípio de “defesa dos direitos da natureza”, respeite os princípios do bem viver e, finalmente, confira à natureza a titularidade de direitos.
“A Lei Orgânica, como o nome diz, organiza o município. Ela está para o município como a Constituição Federal está para o País. Portanto, assim como os direitos fundamentais são assegurados na Constituição Federal, a instância mais apropriada de garantia dos Direitos da Natureza [no município] é a Lei Orgânica”, conta Pastorello a ((o))eco, ao explicar o porquê da proposição ter adotado este rito e não o de um projeto de lei (PL).
Na cidade, onde as emendas precisam, no mínimo, da assinatura de cinco vereadores para serem propostas, a adesão aumentou a expectativa de prosperidade do projeto. “Tivemos 9 assinaturas, o que já nos dá grande chance de sucesso da PLO, tendo em vista que para a aprovação são necessários 10 votos”, diz o vereador.
Quando ainda se discutia de que forma Cáceres (MT) poderia reconhecer a natureza como portadora de direitos, o secretário de Assuntos Estratégicos e Educação do município disse a ((o))eco que, muito possivelmente, um projeto de lei (PL) que tratasse do tema também não enfrentaria resistência no Executivo Municipal. “Talvez movimentos façam resistência na aprovação aqui, mas isso é só um palpite”, declarou Fransérgio Rojas Piovesan, à época.
Como todo projeto legislativo, a PLO ainda deve passar pelo crivo das comissões da Câmara Municipal. Mas um próximo passo importante para a proposição acontece ainda este mês. Esta é uma audiência pública, que está sendo organizada pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ).
“Estamos no Alto Paraguai, temos uma responsabilidade ambiental aumentada com o Pantanal”, afirma o vereador Cézare Pastorello (PT-MT).
Os direitos da natureza no Brasil
Internacionalmente, Equador e Bolívia saíram na frente ao criarem leis para conceder direitos à natureza, entre 2008 e 2010. O feito teve como princípio o entendimento de que, assim como os seres humanos, a natureza tem direito à integridade.
“Isso tem um alcance fenomenal em escala global. Apenas alguns exemplos para ilustrar: os Tribunais Constitucionais têm reconhecido judicialmente os rios e a natureza como sujeito, como ocorreu na Colômbia, com o rio Atrato, Amazônia, Páramos, na Nova Zelândia, com o rio Whanganui, na Índia, com o rio Ganges”, diz o professor de Teoria do Direito da Universidade Federal de Goiás (UFG), Fernando Dantas, que é membro especialista do programa Harmonia com a Natureza, da Organização das Nações Unidas (ONU).
O Brasil ainda não possui em sua Constituição, pelo menos de forma explícita, dispositivos que elevem a natureza à titularidade de direitos. Entretanto, a Carta Magna traz a possibilidade de legislação concorrente, explica a pesquisadora Vanessa Hasson, membro do mesmo grupo da ONU que debate a elaboração de uma futura Declaração Universal dos Direitos da Natureza.
“O Supremo Tribunal Federal (STF) vem repetindo, em decisões, que há constitucionalidade de legislação em nível local para proteger o meio ambiente de forma mais protetiva, mais restritiva”, diz ela, que é doutora em Direito da Natureza. “Existe esse lastro, de estados e municípios poderem legislar para proteger ainda mais do que faz a legislação em nível federal”.
Dantas menciona que a Constituição também afirma que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, indispensável à sadia qualidade de vida. “Essa ‘vida’ não foi adjetivada de humana. Assim, numa interpretação extensiva, se compreende que reconheceu as diferentes formas de vida animal, humana e não humana, vegetal ou de outros ‘seres’ que integram a natureza”, defende.
No País, o primeiro município a ter adotado esse entendimento foi Bonito (PE), em 2018. Desde então, outros quatro já fizeram, de forma mais ou menos semelhante, o mesmo: Paudalho (PE); Florianópolis (SC); Serro (MG); e Guajará-Mirim (RO) — esta última ainda conferiu ao rio Laje, afluente do rio Madeira, a mesma titularidade por meio de projeto de lei (PL). No legislativo de Minas Gerais, Santa Catarina e Pará também tramitam propostas estaduais no mesmo sentido.
“Tudo baseado nessa ideia, de que é importante repensar a nossa relação com a natureza”, conta a ((o))eco a pesquisadora e doutora em Direito Mariza Rios, que coordena o GT (Grupo de Trabalho) Jurídico da Articulação Nacional pelos Direitos da Natureza – Mãe Terra.

“Primeiro município da região”
Segundo Hasson, Cáceres é a primeira cidade do Pantanal a iniciar um processo nesse sentido. “É um movimento inédito nesta região. Mais um ponto onde o reconhecimento dos direitos da natureza está sendo promovido, e em uma região onde ele ainda não tinha chegado”.
Fundadora da Mapas – Oscip que participou do processo de articulação política e assessoria técnica nos cinco municípios brasileiros onde a natureza já foi reconhecida como titular de direitos –, ela conta que no Pantanal pesam no processo iniciado as ameaças que cercam o bioma.
“Há uma preocupação enorme com os cursos d’água, com os rios que estão sendo impedidos de correrem livremente, com a pulverização de usinas hidrelétricas, pequenas centrais hidrelétricas, e com como isso tem impactado a vida das pessoas”, acredita a pesquisadora.
Para Rios, a mobilização dos munícipes de Cáceres para dotar a natureza de direitos mostra que foi esta a forma que estes encontraram de protegê-la. “A população ribeirinha tomou para si a responsabilidade da verdadeira defesa da natureza”, defende a pesquisadora.
Secretária-executiva da Rede de Comunidades Tradicionais Pantaneiras (RCTP), Edinalda do Nascimento também acredita que o reconhecimento pode se tornar um aliado na conservação do bioma. “É uma ferramenta de defesa para a natureza e para as comunidades que aqui habitam”, diz ela a ((o))eco.
Enquanto o projeto tramita na Câmara da cidade, do outro lado cresce a esperança entre aqueles que enxergam na proposta uma chance de equiparação ambiental, que pode ser replicada em outros municípios cercados e sitiados pelo bioma.
“Queremos ser o primeiro município da região, do Mato Grosso, a decretar os direitos da natureza”, afirma o coordenador do Comitê Popular do Rio Paraguai, Isidoro Salomão.
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