REPORTAGEM
Mudanças climáticas impõem novas formas de fazer ciência
Grupo internacional formado por 55 pesquisadores viaja à Amazônia para discutir impactos das mudanças no clima sobre a biodiversidade e como enfrentar desafio de forma conjunta
O Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática da ONU (IPCC) lançou, na última semana, o relatório que sintetiza as descobertas científicas mais recentes sobre as alterações no clima, com uma mensagem inequívoca: o mundo ainda caminha quando deveria estar correndo para combater e mitigar as mudanças climáticas. Enfrentar essa nova realidade impõe desafios em todas as esferas da sociedade. Com a ciência não é diferente: as formas tradicionais do fazer científico precisam se reinventar para conseguir endereçar o problema em suas diversas camadas e em sua magnitude.
Uma das mensagens do IPCC em seu Relatório Síntese, como foi chamado o documento, é que cada aumento acima de 1,5ºC pode ter consequências irreversíveis para a biodiversidade, ampliando o risco de extinção de espécies ou a perda irreversível em ecossistemas de florestas, recifes de coral e no Ártico. “Nosso mundo precisa de ação climática em todas as frentes – tudo, em todos os lugares, ao mesmo tempo”, disse o Secretário-Geral da ONU, Antonio Guterres, por ocasião do lançamento do relatório.
É exatamente esse esforço conjunto que um grupo internacional de pesquisadores vem fazendo, há cerca de oito anos, para entender como as espécies podem se adaptar às mudanças climáticas. Entre os dias 13 e 20 de março, parte deles se reuniu para apresentar os resultados alcançados e discutir novos projetos de pesquisa sobre o tema.
O destino escolhido para o encontro foi a Floresta Amazônica, local com maior biodiversidade no planeta e também um dos mais vulneráveis às mudanças do clima, segundo o IPCC.
Ao longo de uma expedição pelo rio Negro, no Amazonas, um total de 55 pesquisadores de 30 universidades e instituições de pesquisa de sete diferentes países discutiram os impactos das mudanças climáticas em vertebrados, desde o nível molecular, a partir da análise genética (genoma), passando pela forma como tais mudanças se traduzem na forma como esses animais se parecem (fenoma), até as mudanças nas populações.
Um exemplo dessa análise em diferentes níveis é o estudo feito com a lebre-de-cauda-branca (Lepus townsenndii) dos Estados Unidos. A espécie é conhecida por trocar de pelagem durante o inverno, passando do castanho para o branco, para adaptar sua camuflagem. Com o degelo cada vez mais precoce da camada de neve, elas se tornaram alvos fáceis para predadores – um ponto branco numa paisagem já sem neve. Para investigar a possibilidade de sobrevivência dessa espécie às alterações climáticas (populações), pesquisadores dos EUA e Portugal estudaram a origem genética (genoma) da variação da cor da pelagem (fenoma) e criaram projeções de sobrevivência. (Leia mais sobre o assunto nas próximas reportagens da série).
Além da apresentação de suas pesquisas, como a das lebres citada acima, os participantes do workshop/expedição também tiveram a oportunidade de conhecer diferentes ecossistemas da floresta, em saídas diárias de campo.
Barcos da expedição atracados na comunidade ribeirinha Nova Esperança. Foto: Cristiane Prizibisczki / ((o))eco
Novas formas de fazer ciência
O encontro dos pesquisadores na Amazônia foi realizado pela Northern Arizona University (NAU) em parceria com três importantes instituições brasileiras, líderes nacionais em pesquisa em biodiversidade: Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), Universidade de São Paulo (USP) e Instituto Butantan (IBu). O financiamento foi da National Science Foundation americana.
Segundo Loren Buck, pesquisador-sênior da NAU e idealizador do projeto – cujo nome é “Prevendo as respostas dos vertebrados às mudanças climáticas: modelando genomas, fonemas e populações – Rede de coordenação de pesquisa g2p2pop (RCN g2p2pop) – a rede de pesquisadores nasceu justamente do entendimento de que era preciso mudar a forma como a ciência é feita hoje para enfrentar o desafio das mudanças climáticas.
“Há alguns anos, havia um grupo de colegas, e inclusive eu, que percebemos que existem desafios enormes que temos que resolver relacionados às mudanças climáticas, biodiversidade, conservação e que, para enfrentar efetivamente esses desafios, precisávamos de uma nova compreensão de como a biologia, como a Terra funciona. E para fazer isso, precisávamos ter uma rede interdisciplinar de cientistas”, explicou, a ((o))eco.
Segundo ele, o grupo de cientistas apresentou a proposta desse projeto multidisciplinar para um dos programas da National Science Foundation, mas esta não foi financiada, justamente porque eles não conseguiram comprovar, no entendimento dos financiadores, que possuíam uma rede de cientistas sistematizada para conseguir executar a tarefa.
“Então nós sentamos e discutimos o que poderíamos fazer. Bem, entendemos que a primeira coisa que podemos fazer é realmente agregar uma rede de cientistas para quebrar essas barreiras que parecem nos separar na ciência. Portanto, temos ecólogos, biólogos moleculares, biólogos populacionais, todos os tipos de áreas diferentes da ciência que muito raramente interagem. O objetivo disso era realmente quebrar esses nichos e fazer com que cientistas de diferentes formações disciplinares conversassem entre si para que pudéssemos encontrar novas soluções para esses problemas emergenciais”, explicou.
Juntar diferentes saberes e métodos de pesquisa não foi tarefa simples. Segundo Loren Buck, ao longo dos anos de projeto, a forma de interação entre os cientistas das diferentes áreas foi sendo aperfeiçoada. No início, barreiras tão básicas quanto à linguagem tiveram de ser transpostas.
“Em nossas primeiras reuniões, onde tínhamos esses grupos díspares de biólogos juntos e conversávamos sobre conceitos fundamentais para a biologia em geral, o uso da terminologia de um grupo para o outro podia ser bem diferente. Por exemplo, lembro que estávamos discutindo a evolução em um dos primeiros encontros. Este é um princípio fundamental do campo da biologia. E se você é um biólogo populacional, você pode usar este termo “evolução” de forma ligeiramente diferente do empregado por um biólogo molecular”, explica.
De acordo com Buck, entender como algo tão fundamental podia ser percebido e utilizado de forma diferente iluminou a compreensão de outros termos que, inicialmente, poderiam não ter o mesmo entendimento dentro das diferentes disciplinas.
“Quanto mais interagimos, mais padronizamos a linguagem que falamos e mais efetivamente nos comunicamos uns com os outros. Isso torna tudo mais fácil ao montar projetos e testar hipóteses e resultados diferentes com o mesmo conjunto de palavras e usando-os da mesma maneira”, afirma o pesquisador.
Ciência na Amazônia
Na última quinta-feira (23), o Observatório do Clima divulgou o último relatório do Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa (SEEG), indicando que as emissões brasileiras cresceram duas vezes mais do que no resto do mundo entre 2020 e 2021. O desmatamento foi o responsável por 49% dos 2,4 bilhões de toneladas de CO2eq lançados no ar no período, sendo que a destruição da Amazônia responde por 77% das emissões do setor de mudanças de uso da terra e floresta.
Os alertas sobre a importância do bioma na regulação climática global não são recentes. Desde o 4ª relatório do IPCC, ao menos, lançado em 2007, a Amazônia tem papel de destaque no documento. Sua preservação é fundamental para a manutenção do equilíbrio do clima terrestre, mas as altas taxas de desmatamento colocam o bioma cada vez mais em estado de alta vulnerabilidade.
Esses foram alguns dos motivos de a Amazônia ter sido escolhida para sediar o encontro final da Rede RCN-g2p2pop. O fator “encantamento”, no entanto, também pesou na balança. “Nós queríamos propiciar aos envolvidos uma experiência transformadora e essa experiência transformadora eu acredito que a gente pode encontrar aqui nesse ambiente incrível e biodiverso que as pessoas estão podendo vivenciar, a medida em que discutem os problemas, não apenas os restritos a Amazônia, mas questões mais amplas que também se refletem na Amazônia atual”, explicou a Dra. Erika Hingst-Zaher, pesquisadora do Instituto Butantan e coordenadora local do workshop.
Além da possibilidade de maior – e melhor – compreensão do que significa a Amazônia no cenário das mudanças climáticas, a realização do evento no bioma pode trazer um outro resultado, como explica o pesquisador do INPA Philip Fearnside, que há 45 anos estuda o bioma.
“Esse grupo que está aqui é um grupo que aconselha a NSF [National Science Foundation], então, se eles ficaram convencidos que a Amazônia é importante, significa que podem destinar mais dinheiro para pesquisas sobre a Amazônia, a partir da colaboração entre universidades americanas e com o Brasil”, ressaltou.
Trecho do Rio Negro com suas ilhas de floresta submersa. Foto: Cristiane Prizibisczki / ((o))eco
Redes de interação
A Rede g2p2pop reúne hoje mais de 300 cientistas de 23 países, comprometidos com o desenvolvimento de modelos para compreender os principais processos que acontecem em diferentes níveis de organização biológica a partir das mudanças no clima e outras alterações ambientais causadas pelo homem.
Os participantes do Workshop de encerramento do programa, realizado agora na Amazônia brasileira, foram escolhidos com cuidado. Segundo Erika Hingst-Zaher, a seleção de palestrantes e participantes priorizou a diversidade, incluindo a posição na carreira acadêmica, a área de estudo, nacionalidade e gênero.
Dentre os selecionados estavam alunos de graduação e pós-graduação, mestrandos, doutorandos, pós-doutorandos, pesquisadores em início de carreira e cientistas seniores. Metade dos participantes veio do Brasil e a outra metade de diferentes países da África, Europa e América do Norte.
“A ciência é construída a partir da diversidade, da diversidade de pontos de vista, de opiniões e de abordagens. Então, a reunião dessas pessoas aqui torna o encontro e o debate mais ricos, além da gente poder formar a nossa próxima geração de pesquisadores”, disse a pesquisadora do Instituto Butantan. “Eu fico particularmente feliz em termos um número considerável de estudantes brasileiros de graduação e pós-graduação, que estão tendo a oportunidade de interagir com pessoas de várias nacionalidades e, ao voltar para seus laboratórios e instituições no Brasil, vão poder espalhar esse conhecimento”.
Para a pós-graduanda Ane Guadalupe Silva, cujo projeto de mestrado desenvolvido na Unesp de Jaboticabal é voltado para o impacto da estiagem e desidratação em animais que hibernam, a experiência foi enriquecedora em vários aspectos. “Eu achei tudo maravilhoso. Foi minha primeira vez na Amazônia, nunca tinha estado na floresta, passeado no rio, andado de canoa”, diz. “Gostei muito de conversar com gente de todos os lugares e é muito importante essa colaboração, o compartilhamento de ideias”, acrescentou.
Amanda Carter, professora Assistente da Northern Arizona University, também concorda que a rede de colaboração formada terá papel fundamental em seu futuro na ciência. “Eu estou em uma fase crítica da minha carreira, onde acabei de iniciar na minha cátedra de professora assistente e estou sempre correndo contra o relógio, por assim dizer, então tenho que ser muito produtiva e estratégica com minha pesquisa. E este workshop me permite fazer networking com muitas outras pessoas com quem eu poderia colaborar para me ajudar a expandir questões de meu programa de pesquisa em novas direções que eu realmente queria seguir e não conseguia por um motivo ou outro”, diz ela, que estuda a forma como tartarugas, salamandras e besouros respondem às mudanças de temperatura.
Assim como preconizou recentemente o secretário-geral da ONU, para enfrentar o desafio das mudanças climáticas é preciso “tudo, em todos os lugares, ao mesmo tempo”. E isso a rede de pesquisadores RCN g2p2pop já está fazendo.
A repórter Cristiane Prizibisczki viajou a Manaus a convite do projeto RCN g2p2pop. Acompanhe nas próximas reportagens desta série a história de alguns dos trabalhos apresentados durante o workshop.
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