Em meio à disputa por água, Bacia do Rio Formoso sofre com monitoramento precário

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A Bacia do Rio Formoso é palco de disputas no sudoeste do Tocantins. Há cerca de sete anos, pequenos produtores, povos indígenas, associações e organizações dedicadas à defesa dos direitos humanos da região estão em conflito judicial com projetos agroindustriais por um dos bens mais preciosos para a humanidade: a água. O desenvolvimento de um sistema para evitar o uso indiscriminado de recursos hídricos parecia ser a solução, mas ainda não trouxe os resultados esperados, já que algumas bombas utilizadas continuam fora do processo de monitoramento.

Enquanto isso, a redução da disponibilidade hídrica é uma realidade para moradores de 15 municípios do Tocantins nos meses de estiagem, período entre abril e setembro. O sudoeste do estado chegou a registrar mais de 115 dias sem chuvas em 2022. Com a consequente diminuição dos níveis dos rios, é de se imaginar que uma gestão consciente da água e ações de proteção de nascentes e matas ciliares fossem postas em prática. 

No entanto, não é o que se observa, já que a região soma aproximadamente 700 procedimentos ambientais em tramitação e ações judiciais no Ministério Público Estadual e parte considerável desses processos está relacionada ao uso desregrado de água por projetos de irrigação, além de desmatamento ilegal. A alta demanda na região foi, inclusive, um dos fatores para a criação de uma promotoria especial para lidar com questões ambientais em 2018, a Promotoria Regional Ambiental da Bacia do Alto e Médio Araguaia.

Dentre os processos, destaca-se uma Ação Civil Pública de 2016, que tinha como uma das principais demandas, a suspensão de captações de recursos hídricos em larga escala, a destruição de bombas de captação e canais do Projeto de Irrigação do Rio Formoso, assim como pedidos cautelares em desfavor do Instituto Natureza do Tocantins (Naturatins), órgão ambiental estadual. Dessa ação, surgiram acordos que culminaram no desenvolvimento do Sistema de Gestão de Alto Nível (GAN), uma ferramenta para auxiliar produtores, moradores e órgãos de fiscalização e proteção ambiental do estado.

Municípios mais afetados pela escassez hídrica na estiagem. Arte: Gabriela Güllich.

A ciência como mediadora de conflitos

Segundo o professor Felipe Marques, do curso de Engenharia Civil da Universidade Federal do Tocantins (UFT), que participou do processo desde o início, a instituição foi chamada com o intuito de esclarecer o problema e apontar uma saída. A ideia era a ciência propor soluções tecnológicas que atendessem aos interesses dos produtores e assegurassem a proteção ambiental. 

A solução encontrada foi a criação do Sistema de Gestão de Alto Nível (GAN), que começou a ser desenvolvido pelo Instituto de Atenção às Cidades (IAC), em 2016, e passou a funcionar em abril de 2017. 

“O sistema monitora, ao mesmo tempo e em tempo real, a oferta e a demanda de água”, explica o professor Felipe. “Para monitorar a disponibilidade hídrica, existem estações instaladas que monitoram o nível de água dos rios. Com essa informação, conseguimos calcular a vazão, que é a quantidade de água que passa num determinado período de tempo. Do outro lado, temos a demanda hídrica, monitorada por estações instaladas nas bombas de captação de água”, completa.

“Com esse sistema, passamos a trabalhar a gestão de água como se fosse um extrato bancário. Temos os valores de disponibilidade e demanda, com a demanda não podendo superar a disponibilidade”, acrescenta o professor.

Universidade Federal do Tocantins desenvolve tecnologia para intermediar conflitos na Bacia do Rio Formoso. Reprodução: Repórter Brasil/TV Brasil

Os dados coletados ficam disponíveis no Painel de Monitoramento da Demanda Hídrica do IAC/UFT. De acordo com dados dessa plataforma, existem 109 medidores instalados em propriedades rurais da região. Desse total, apenas oito estão ativos e registrando em tempo real o consumo e a vazão dos corpos d’água.

É importante pontuar que o número de monitores ativos varia de acordo com a época do ano e as condições climáticas e, em diversas ocasiões, foi necessário atualizar os dados da reportagem para que as informações fossem as mais completas possíveis. Já a atividade de captação se torna mais intensa nos meses de estiagem, entre abril e setembro. No momento, por conta das intensas chuvas, a maioria das bombas está inativa.

Atualmente, existem 75 medidores desligados, o que significa que as bombas não estão funcionando no momento, além de 26 desconectados. Esse último número, que representa mais de 20% dos aparelhos de captação, é considerado preocupante pela população afetada, pois a desconexão impossibilita o monitoramento remoto, sendo necessário equipes in loco para fiscalizar.  

“As estações desconectadas são estações com problemas”, explica o professor da UFT. Ele observa que, “nesses casos, existe algum erro relacionado à alimentação de energia, desconexão de fios causada pelo movimento de máquinas agrícolas ou aos animais, transmissão por satélite ou ao próprio funcionamento no medidor”. E acrescenta que “na época de chuva, a incidência de raios aumenta, então é comum alguns equipamentos serem queimados”.

Ainda segundo Felipe Marques, “também há casos de estações que dependem do sinal 3G e a alimentação de dados para por alguns dias quando o sinal cai, sendo necessário realizar uma manutenção corretiva, onde uma equipe vai a campo, identifica qual o problema e corrige-o”. 

Esse tipo de manutenção, contudo, não é a única que deve ser feita. O pesquisador lembra que existem dois tipos: a preventiva, para evitar transtornos, e a corretiva, motivada por incoerências no funcionamento. “Todos os anos é preciso fazer uma manutenção preventiva. Ela ocorre em abril, no início da estiagem, para evitar que problemas ocorram com os monitores justamente no período mais crítico”, esclarece.

Além da mobilização de equipes de campo para inspecionar as estações de monitoramento, um outro ponto que colaboraria com o aperfeiçoamento do sistema seria a ampliação de investimentos. Pela perspectiva do especialista, “como tudo começou dentro de um processo judicial, o Estado se sente um pouco ameaçado pelo sistema, porque muitas vezes a demanda supera a disponibilidade e, em tese, isso [a captação] não poderia ser autorizado”.

A Bacia do Rio Formoso em Crise

“A água é muito visada”, relata Lusiene de Sousa Araújo, presidente do Centro de Direitos Humanos e moradora de Formoso do Araguaia. “Existem muitas bombas funcionando. Na estiagem, eles tiram a água do rio. E agora, que está chovendo bastante, a situação é diferente. Eles jogam água contaminada com agrotóxicos que eles usam de volta nos rios, porque os canais que eles constroem ficam cheios e podem alagar as suas plantações”, denuncia.  

Durante a entrevista concedida ao ((o))eco, Lusiene mencionou em diversos momentos “eles”. Ao ser perguntada sobre a quem se referia, ela respondeu: “são os grandes produtores da região, não tem gente pequena envolvida nesses projetos [de irrigação]. Quem não tem dinheiro, nem vai”. 

Na estiagem, rios do sudoeste do Tocantins sofrem pela falta de chuvas e intensificação da captação de água. Foto: Divulgação/Ministério Público do Estado do Tocantins.

Uma versão um pouco diferente é dada pelo presidente da Associação dos Produtores Rurais do Sudoeste do Tocantins (Aproest). Wagno Milhomem orgulha-se de representar os interesses dos produtores que participam do maior projeto de agricultura irrigada por subinundadação da América Latina, o Projeto de Irrigação do Rio Formoso. 

“A Aproest conta atualmente com 41 produtores associados e as licenças de captação de água para irrigação concedidas aos empreendimentos agrícolas são todas regulares, seguindo normas e leis vigentes. Todos os produtores que estão na Bacia do Rio Formoso e do Javaés têm os medidores e, portanto, o monitoramento eletrônico”, afirma.

Todavia, pareceres do Ministério Público do Estado do Tocantins contestam algumas das afirmações do presidente da Aproest, chegando a dizer que “permitir a captação extemporânea por parte de um ou de alguns produtores, é premiar aqueles que não adotaram as melhores práticas na tutela ambiental […], privilegiando outros que continuam “apostando” na falta de gestão ambiental”.

No relatório n° 156 de maio de 2022 do Centro de Apoio Operacional de Urbanismo, Habitação e Meio Ambiente do órgão, é apontado que a área plantada na região da Bacia do Rio Formoso triplicou nos últimos dezessete anos, saindo de 27 mil hectares em 2004 para mais de 83 mil hectares em 2021. Desse total, o Ministério Público identifica a possibilidade de ter havido desmatamento ilícito de quase 30 mil hectares.

Com a expansão da área plantada, a demanda por água também aumenta. De acordo com o Francisco Brandes Júnior, promotor regional ambiental do Araguaia, todos os anos são feitos pedidos cautelares de suspensão da captação no período de estiagem. E todos os anos os produtores recorrem e garantem a continuidade do uso.

“Sem dúvida, houve uma melhora na atuação dos órgãos e uma mudança de posturas dos produtores, mas ainda não é suficiente”, afirma o promotor que acompanha o processo há oito anos. “Você ter um sistema não significa a proteção do meio ambiente. O que percebemos é que os órgãos e os empreendedores rurais não se apropriaram dos dados e, enquanto isso não acontecer, não há segurança hídrica, não há garantia de eficácia do sistema”, opina Brandes Júnior.

Canais de irrigação do maior projeto de agricultura irrigada da América Latina. Foto: Márcio Di Pietro/Governo do Tocantins

Perspectivas para a bacia

Ainda que o conflito não tenha data para ser resolvido, aos poucos, alguns se esforçam para transformar a realidade. Lusiene Araújo, moradora de Formoso do Araguaia que, em 2022, assumiu a presidência do Centro de Direitos Humanos local, conta que uma das maneiras encontradas para ampliar a voz da população e conseguir mudanças é a participação no Comitê de Bacia Hidrográfica do Rio Formoso.

“O comitê se reúne várias vezes ao ano com reuniões são itinerantes, para que cada uma das cidades que compõem a bacia seja representada. As pautas variam dependendo da cidade, do que foi discutido anteriormente e o que está planejado na nossa agenda”, explica Lusiene. As atas desses encontros ficam disponíveis no portal da Semarh

Na página é possível encontrar um relatório com a lista de ações anuais do comitê. O último Relatório Anual de Atividades da Bacia do Rio Formoso é de 2021. No documento, foram listadas 15 ações. A maior parte delas trata de divulgação e organização interna, mas uma delas chama a atenção: a colheita de sementes para o viveiro do município de Gurupi. 

“No comitê, temos um projeto para recolher sementes de árvores nativas. Essas mudas serão cultivadas em um viveiro de Gurupi. Depois, as sementes serão plantadas em áreas devastadas, áreas de nascentes que precisam ser recuperadas”, conclui a presidente do Centro de Direitos Humanos. 

O que dizem os órgãos de regulação e fiscalização?

A manifestação do Instituto Natureza do Tocantins (Naturatins), órgão diretamente ligado à questão, foi o silêncio. Em nenhuma das tentativas de o ((o))eco houve resposta sobre as denúncias de crimes ambientais e do trabalho exercido para garantir a proteção do meio ambiente. 

Já a Secretaria Estadual do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Semarh) informou que a “Lei Estadual de Recursos Hídricos nº 1.307, de 22 de março de 2002 assegura o uso múltiplo das águas. Por conseguinte, a captação de água para irrigação é classificada como uso múltiplo das águas. Para o caso em epígrafe, o estado do Tocantins tem realizado o monitoramento em tempo real da disponibilidade e demanda dos recursos hídricos na Bacia do rio Formoso”. Acrescentou também que a secretaria dispõe de nove servidores trabalhando direta e indiretamente no monitoramento hidrometeorológico da bacia e que todos os projetos referentes à Bacia do Rio Formoso são liberados pelo Instituto Natureza do Tocantins (Naturatins).

A assessoria de imprensa da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), por outro lado, quando questionada a respeito da situação atual das outorgas de captação de água e das Declarações Anuais de Uso de Recursos Hídricos da região, respondeu ao ((o))eco que “todas as ocorrências de “rio Formoso” encontradas em nossa base de dados indicam que o rio com esse nome, seja em Goiás ou na Bahia, é de domínio estadual”.

Esse conteúdo é resultado da bolsa-reportagem concedida aos alunos do Minicurso de Jornalismo Ambiental, realizado por ((o))eco, Imazon e Fundação Amazônia Sustentável


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